A surra do menino
Todo o dia era a mesma coisa: ele, o chato provocador, chegava a mudar de caminho para azucrinar. É verdade que o mano, três anos mais moço do que eu, não era nenhum santo. O pequeno, com seis anos e alguma coisa, não era fácil. Briguento e sem noção do tamanho dos outros.
Morávamos no interior do interior. A escola nos custava mais de meia hora de caminhada para ir e outro tanto para voltar. Usávamos uniformes de escola, brancos, engomados, com um laço azul marinho. Éramos cuidadosos com o uniforme, nem tanto por orgulho de estar estudando no grupo escolar, mas mais por temermos o chinelo que certamente nos pressionaria impiedosamente as nádegas se o sujássemos... Coisas de mãe.
Não éramos ricos, mas isso, naquele tempo, não era importante. Morávamos numa chácara que ao fundo tinha um riacho. O chalé não era grande, mas cabíamos nós todos, o pai, a mãe, o mano mais velho, eu e o mano mais moço. Minha irmã nasceu bem depois...
Meu pai tinha um cavalo, e quando voltava do trabalho, permitia que eu montasse dentro do terreiro cercado. Ele tropeava gado para o matadouro de meu avô. Quando meu avô morreu, meu pai passou a vender enxertos de frutíferas. Ia a cavalo pelos interiores mais interiores ainda, colhia os pedidos e mais tarde distribuía as mudas usando uma carroça comprida, onde as mudas eram amarradas em feixes conforme os pedidos.
Minha mãe era uma mulher bonita, muito trabalhadeira, sempre via o que fazer. Mantinha-nos asseados e nos disciplinava com severidade. Tenho poucas lembranças dos meus irmãos, de brincadeiras juntos, de brigas. Quase nenhuma lembrança. Poucas exceções, tanto que encontro essa agora e antes que fuja, escrevo.
Como dizia, íamos a pé para a escola. O menino provocador era bem mais velho e não estudava na minha sala. Fazia quase o mesmo caminho dizendo coisas à meia voz, perfeitamente audíveis e ofensivas na minha inteligência de nove anos e meio. Bem que ele poderia estar respondendo a provocações de meu mano, às quais eu não assistira. Meu irmão também resmungava. E íamos e vínhamos nesse tom. Dia após dia. Mas um dia...
Foi na volta para casa. Não adiantava apressar o passo ou relaxar o ritmo. Ele nos perseguia. Palavras de lá, resmungos daqui, e eu quieta. A estrada era lisa e abaulada, recém a patrola havia passado deixando seus característicos sulcos nas laterais, embarrados por uma das muitas chuvas de verão. Lentamente tirei o laço de fita, o guarda-pó branco e os guardei na minha “pasta”, um saco de açúcar “cristal” onde cabiam o caderno, o livro, o lápis e a borracha. Bem dobrados, o uniforme e a fita couberam.
Em um salto, empurrei o grandão. Ele caiu na vala lateral. Antes que se levantasse, pulei sobre ele e esmurrei. Uma, duas, três... Muitas vezes. Perdi a conta. Ele não reagia, pois o meu peso impedia. Não sei quando parei, se cansei ou se me tiraram de cima dele.
Quando chegamos em casa, nenhuma palavra para ninguém a respeito. Almoçamos. No meio da tarde, a mãe, com o menino pela mão, veio conversar. Contou o ocorrido. Minha mãe chamou e eu confirmei. Vendo o tamanho do menino agredido e o meu tamanho - sempre fui mirradinha -, falou para a mulher que eram coisas de crianças e que não havia o que fazer. Foram embora. O menino nunca mais nos importunou. Dias depois ouvi, por acaso: -“se a mãe dele não tivesse falado, eu não acreditaria...”