domingo, 11 de dezembro de 2011


BILHETE NA MOCHILA


      A relação de aprender na escola tem, pelo menos, três atores e um tema. Tem pais, alunos, professores e conteúdo. Simplificando: pais fornecem alunos para a escola, onde o professor tem a função de aprová-los em determinados conteúdos.

      A divisão clássica entre instrução e educação há muito vem se modificando e chega aos nossos dias com os limites bem confusos. Ainda assim, os educadores têm o genuíno desejo de receber alunos minimamente educados para então instruí-los.

      E tudo vai bem (será?) até o momento em que, na mochila do educando, aparece um bilhete pedindo atenção a comportamento não desejável ou atenção à nota que não satisfaz a média de aprovação. E a pergunta que se põe é “quem errou?” ou “de quem é a culpa?”

Nas escolas particulares, os alunos são “clientes”. Os pais contratam as boas notas, os elogios e a aprovação. Vivem, difundem e reproduzem seu ideal de vencedores (afinal, conseguem pagar escolas particulares para seus filhos) e impõem esse ideal de infalibilidade como único caminho para o sucesso. A reação é furiosa - e assistida pela criança que legitima para si também o desrespeito ao entregador da mercadoria - e alveja a incompetência da escola de cumprir o seu papel contratual.

      Já nas escolas públicas, os alunos são “assistidos” e a expectativa pode ser a merenda, o cuidado durante as horas de trabalho e a leniência de se encontrar jovens em séries avançadas apenas juntando sílabas. O bilhete na mochila reforça a incompetência do aluno em aprender (e nisso difere da escola particular) e de todo o sistema envolvendo, inclusive, o conteúdo acusado de elitista (alguém aqui já usou báskara fora do contexto acadêmico?) e descolado da realidade vivida ou sonhada.

      Pressionados em ambas as situações, seja para atingir metas de excelência e assim agregar novos investimentos e expandir a clientela, seja em atingir os índices mínimos estabelecidos na relação estatal, os professores relutam entre reagir com idealismo ou prosseguir com o simulacro: a escola finge que é o espaço organizado para a instrução, o professor finge que ensina, o aluno finge que aprende e os pais fingem que educam. E todos são “aprovados”.

      Ron Clark (http://veja.abril.com.br/noticia/educacao/pais-e-professores), autor do segundo artigo mais compartilhado no Facebook, propõe o respeito e a proximidade entre pais, professores e escola. A conquista a ser buscada é uma relação harmônica e um ambiente de cooperação onde se discuta e se atue com honestidade e comprometimento.

       Quem sabe não se precise assistir a filmes (Ron Clark story: 2005; To sir with love: 1967; Dead poets society:1989, por exemplo) nem escrever ou receber o bilhete na mochila para fazer a escolha do que se quer. Ou não?


quinta-feira, 1 de dezembro de 2011


CONSERTANDO A JANELA QUEBRADA


     Muitas janelas estão quebradas, umas mais importantes e visíveis e outras mais discretas e sombrias. Por onde começar? Na evolução não há saltos. Existem, isso sim, iniciativas perseverantes e ações mínimas que podem ser o primeiro passo.

     Na teoria, uma vidraça quebrada convida a que a próxima seja apedrejada também. Kelling e Cole descrevem em seu livro Fixing broken windows que se um edifício tem uma janela quebrada por um longo período, os vândalos se sentem encorajados a prosseguir com a depredação. Em outras palavras, pequenos deslizes que restem sem correção incentivam a que se amplie a desordem.

     E como consertamos? Coisas simples, podemos começar atravessando a rua na faixa de segurança, largando lixo no lixo – separando até, se houver coleta seletiva-, respeitando o sinal de pedestres, não ultrapassando pela direita, respeitando a fila, cedendo o lugar ao idoso ou à grávida, não fingindo que não vemos, pagando as contas em dia – inclusive os impostos...

     Essas são pequenas atitudes que podem facilitar gentilezas maiores, que podem facilitar atitudes mais civilizadas, que podem trazer mais respeito nas relações com o outro, que podem trazer mais cuidado com o patrimônio alheio, que podem fazer as pessoas melhores e mais compassivas.

     Somando essas ações, com o passar do tempo, nossa autoestima coletiva pode nos conduzir a olhar mais para cima e exigir daqueles que tem o encargo de assegurar o bem comum, atitudes mais compatíveis com a nova cidadania responsável que estamos desenvolvendo.

    Algumas janelas já podem ser reparadas agora, vamos juntos?

sábado, 12 de novembro de 2011


MAIS UMA VEZ OS 99%

        Estive hoje no Athens Syntagma Square em, evidentemente, Atenas. Após fui à Gehardt-Hauptmann Platz em Hamburgo. Em seguida, para o “acampasampa”. Dali segui para a Antuérpia e dei uma olhada no que acontecia na Groenplatz. Estive também em Paris (La Defense), em Moscou e ainda dei uma passadinha em Oakland. Outro dia eram 168 opções em livestream. Hoje já são 196 canais para se acompanhar, ao vivo, o que acontece pelas praças do mundo todo.

        As redes sociais são efetivas em juntar a experiência estratégica das ocupações e divulgam as atas das reuniões, a planilha recheada de eventos culturais e de sensibilização, de recados e de pedidos de solidariedade. Documentam também as oficinas envolvendo música, esporte e artes, as bibliotecas populares, os murais e manifestações outras. Há alguns dias os “indignados” da Cinelândia perderam a sua cozinha (problema aparentemente já resolvido) e reorganizaram a segurança realocando as barracas e insistindo para que elas não sejam apenas equipamentos vazios e esvaziados pelo desconforto. Os homeless da Cinelândia repartem o espaço mobilizado por seus novos companheiros.

        O occupywallstreet já é o occupyaspraçasmundoafora. Os 99% se multiplicam repetindo em alto e bom som a voz dos discursos existindo ou não mega ou microfones. Você percebe a força das palavras repetidas e ecoadas no coração de cada um, como um poderoso mantra?

        Qual o gatilho do OWS? A intolerância à desigualdade e à ganância do 1% que domina a economia. Na esteira da primavera árabe, se busca a reflexão e a capacitação das pessoas para criarem uma “verdadeira mudança de baixo para cima”, com o uso da não-violência e sem líderes carismáticos a conduzir o rebanho. A maior mudança é o protagonismo plural, não unificado e não imediatista. É a atenção para que cada um busque, no seu entorno primeiro, a justiça das relações econômicas, a democracia que extrapole o limite do voto, a conscientização do seu valor, a oportunidade de usar seus talentos e habilidades, o trabalho a um salário justo e, fundamentalmente, a solidariedade. No dizer de Stigliz (Nobel de Economia): "uma democracia não controlada pelo dinheiro".

        Uma agenda bem interessante...


sábado, 5 de novembro de 2011


Planeta da fome


      Chegamos aos 7 bi de almas viventes no planeta. Estrondosa marca que poderia ser festejada por todos os condôminos, se todos fossem condôminos. Não são.

      Estamos envolvidos - alguns genuinamente outros nem tanto – em resolver questões de como partilhar os recursos. Como bastar a todos com o mínimo? Como, após bastar o mínimo, oferecer opções? Como?

      A pesar de ser espantosa, la miseria humana no ha sido nunca una realidad digna de atención en las sociedades porque la preocupación por la conservación, que da a la producción la apariencia de un fin, se impone sobre el gasto improductivo. Para mantener esta preeminencia, como el poder está ejercido por las clases que gastan, la miseria ha sido excluida de toda actividad social […] dizia Bataille. Isso, ao menos, nos tira o cinismo. E nos conduz ao tempo em que passamos a nos ocupar, por diversos motivos, com os 1 bi de humanos que adormecem com fome.

      Os processos que antecedem a produção de alimentos e prosseguem até a saciedade do indivíduo é tortuoso e cheio de agudezas. Quantas muitas vezes é interrompido por descaminhos. E surpreendentemente, coexiste com práticas generosas: ah, nossa contradição humana...

      Organismos internacionais, nacionais, regionais, locais e pessoas comuns do povo ocupam-se com a questão. Uns em larga escala, com políticas e concretas ações globais, outros com o simples fechar a torneira enquanto escova os dentes, mais alguns separando e exigindo das autoridades o correto destino do lixo.

      Mesmo que ainda nos pese, por muitos anos, a sombra dos famintos, quando tocados, já agimos melhor. Mesmo que esse agir melhor ainda não seja suficiente, estamos no caminho. Vamos acelerar e juntar mais de nós, pois, afinal, ainda tem gente que adormece com fome.

domingo, 23 de outubro de 2011


Como nós

         Que diferença têm, entre si, aqueles que usam os mesmos métodos dos que os antecederam? Se o regime e o déspota deposto representaram a dura oposição e a clara negativa aos direitos civis e à democracia, o que dizer destes que nem bem se instalaram e já desdenham das garantias individuais como seu antecessor?

         Nada de novo. É a prática reiterada e repetitiva do golpe, da tomada de poder e do trucidamento das antigas lideranças... E em algum tempo – mais longo ou mais curto -, a história se repete, mudando alguma coisa na forma, mas o fundo permanece: interesses econômicos de clãs locais ou de clãs estrangeiros.

     
         Em meio a essa retaguarda repetitiva, encontramos mães e pais, filhos e sobrinhos, avôs e avós desejando o seu dia-a-dia de um passo após o outro, mesclando suas generosidades e suas mesquinharias, no rumo desejável à suavização de ódios tão ancestrais. Fartos de tanta contrariedade e tropeço nas suas mais comezinhas intenções, fartos de tanta falta que seus parentes e amigos fazem.

         Pessoas nem tão boas, nem tão más. Só pessoas. Como nós.

domingo, 16 de outubro de 2011


Verdades e mentiras

Mentiras e verdades só se relacionam em uma única via, só haverá mentira se houver algo nomeado de verdade para ser ocultado.

A propósito, a verdade é possível? É um largo questionamento que nos leva a imbricados caminhos aos quais ousamos, por ora, renunciar. Assim, assumindo que se pode falar sobre algo que pode ou não existir, ou pode ou não ser possível, tangenciamos o que já se falou sobre a verdade, e vamos abordá-la pelo viés do desejo e do julgamento.


              http://www.freedigitalphotos.net/images/Ideas_and_Decision_M_g409-Question_Symbol_p16223.html


O desejo é o motor da humanidade. Em si, não é bom nem mau. O desejo de ser bom, compassivo, amoroso, é bom. O desejo de ser mau, egoísta e rancoroso, é mau. Admitindo a redução, constatamos, dessa forma, que o desejo é diferente de seu objeto. E essa diferença deve estar bem clara quando buscamos a verdade, para que ela não expresse, apenas, o nosso desejo.

Na busca da verdade executamos julgamentos que, raras vezes, são diferentes do nosso desejo. Nosso julgamento pressupõe um padrão inicial que confrontamos com o que os sentidos nos noticiam. Esse padrão estabelece uma verdade que, na falta de outra melhor, mais elaborada ou mais verdadeira, serve para espelhar a diferença. Cá entre nós, como humanos, a diferença nem sempre é apreciada... Mas, entre o padrão que criamos e a verdade que opinamos pode haver uma grande distância!

No convívio familiar e social tendemos a utilizar filtros. Há tesouros guardados em nossa intimidade que recusamos compartilhar, há coisas que podem ser ditas e outras são melhores quando não ditas. A decisão de filtrar vai da conveniência. Às vezes a opinião que nos é solicitada é tão contundente que o nosso ouvinte pode se indispor conosco e gerar reação tal que ultrapasse os limites do nosso conforto. Então... mentimos. Mas será mesmo necessário mentir? Pode haver uma maneira amorosa e delicada de dizermos o que precisamos dizer. Pode existir um modo de não evidenciarmos a nossa ansiedade em fazer prevalecer nosso ponto de vista e assim evitamos o atropelamento da autoestima do nosso próximo.

O exame das nossas intenções (desejos) quando formulamos nossos padrões - que são mais saudáveis quando flexíveis - e o exame das nossas intenções quando fazemos nossos julgamentos está na ordem do dia.

Quem sabe figuremos primeiro, legitima e honestamente, o que pretendemos com nosso discurso. Assim, examinar o nosso julgamento e o desejo do resultado da publicação da “nossa” verdade é o que nos diferencia em animais sociáveis ou apenas sociais.

quarta-feira, 12 de outubro de 2011


TRÊS MULHERES PELA PAZ

Quem de nós tem atenção especial à Libéria? Ou ao Iêmen? Pois é, são de lá as três mulheres que repartirão entre si o Prêmio Nobel desse ano.

O presidente do comitê destaca que elas foram “recompensadas por sua luta não violenta pela segurança das mulheres e pelos seus direitos a participar dos processos de paz”.

Tawakkul Karman, mãe, iemenita, jornalista e pacifista lamenta seu país caminhar a passos largos para uma guerra civil: “sou uma cidadã do mundo, a Terra é minha pátria e a humanidade é minha nação”. Ellen Johnson-Sirleaf, mãe, liberiana, economista, é presidenta de um país em franca reconstrução após 14 anos de guerra civil. Leymah Gbowee, mãe, operária social, é militante pacifista e organizou as mulheres liberianas com o que estava ao seu alcance: reuniões, preces nas praças e greve de lençóis: “se qualquer mudança tivesse que acontecer na sociedade, isso teria que ser feito pelas mães”.

Três mulheres pela paz...

terça-feira, 4 de outubro de 2011

Nós somos os 99%

 
O que significa ser os 99%? O primeiro documento oficial que divulga o movimento e estabelece sua convicção e sua estratégia (pelo menos por agora) está publicado e estão sendo preparados mais três: “uma declaração de demandas do movimento; os princípios de solidariedade e a documentação de como formar o seu próprio Grupo de Ocupação de Democracia Direta”.

 
20111004-occupy-wall-street
http://tatianeps.net/2011/10/occupywallstreet-primeiro-comunicado-oficial-do-ocupar-wall-street/


São inconformados não-passivos. Eles perderam as suas casas em financiamentos diabólicos, colaram grau e não conseguem empregos, foram demitidos e excluídos da proteção de saúde, veem-se obrigados a optar entre a alimentação e o aluguel...

Acusam o 1% restante (que de resto não têm nada) de “perpetuarem a desigualdade e a discriminação” e de serem favorecidos pelas benesses da política mal conduzida e das finanças concentradoras.

Já se ouvem ecos em outras praças centrais: São Francisco, Chicago, Los Angeles, Seattle, Albuquerque, Filadélfia e Boston. O já chamado Outono Americano tem semelhanças e dessemelhanças com a Primavera Árabe. Quem se arrisca a fazer a lista?

Por enquanto, melhor acompanhar atentamente...

domingo, 18 de setembro de 2011

Ainda Onze de Setembro

Há 10 anos vimos, com perplexidade, a cruel ingenuidade dos novaiorquinos balbuciando “por que nós?” quando alvejados em seu próprio território. Na homenagem às vítimas de 2001, o presidente norte-americano usa uma passagem bíblica em seu discurso e, em que pese a oposição interna, acrescenta que, em 10 anos, dois milhões de soldados foram enviados para o exterior com a missão de “defender os cidadãos da América e seu modo de vida”.

Essa defesa envolve populações que precisam ser “salvas” de si mesmas e que, coincidentemente, estão instaladas sobre imensas e lucrativas reservas energéticas. O discurso de proteção, democracia, dignidade e liberdade justifica a intervenção. Os nativos e outras milícias protagonizam cenas de ódio iguais às do invasor. Os dias explosivos correm imprevisíveis e a única regularidade é a violência. Será que ter por rotina diária a guerra é menos emblemático do que a visibilidade da destruição das torres americanas?


A violência não tem explicação. É uma insanidade recíproca na qual não se buscam razões: seu único suporte é a desrazão. A desrazão da irresponsabilidade do não importa de onde vem ou quanto vai custar, queremos nosso conforto, a desrazão de crianças servindo ora de bombas ora de escudos.

Se olhamos povos, vemos a soma díspar de seus indivíduos. Apesar da singularidade, seja pela indiferença ou pela comodidade - e mesmo correndo o risco da simples redução -, observamos características comuns a cada uma dessas pessoas, partilhadas em maior ou menor grau. É assim que somos cidadãos de um país ou de componentes de uma etnia. Nesse coletivo, temos duas escolhas: ou concordamos com o que a maioria concorda e usufruímos da totalidade dos resultados tornando-nos individualmente responsáveis por todos, ou registramos com eficácia nossa discordância, seja aprimorando os pensamentos, seja escolhendo melhor as palavras, seja em atitudes que figurem exemplos de honestidade e retidão.

Podemos participar de um tempo melhor, mais compassivo e justo.

sábado, 10 de setembro de 2011

ONZE DE SETEMBRO


A ignorância não justifica a ignorância. Da mesma forma, uma resposta violenta não é justificativa para uma agressão. Há maneiras bondosas e compassivas de se responder atribuindo à reação maior eficácia.

Abençoa e passa

 Não basta recear a violência.
É preciso algo fazer para erradicá-la.
Indubitavelmente, as medidas de repressão, mantidas pelos dispositivos legais do mundo, são recursos que a limitam, entretanto, nós todos, - os espíritos encarnados e desencarnados, - com vínculos na Terra, podemos colaborar na solução do problema.
Compadeçamo-nos dos irmãos envolvidos nas sombras da delinquência, a fim de que se nos inclinem os sentimentos para a indulgência e para a compreensão.
Tanto quanto puderes, não participes de boatos ou de julgamentos precipitados, em torno de situações e pessoas.
Silencia ante quaisquer palavras agressivas que te forem dirigidas, onde estejas, e segue adiante, buscando o endereço das próprias obrigações.
Não eleves o tom de voz, entremostrando superioridade, à frente dos outros.
Não te entregues à manifestações de azedume e revolta, mesmo quando sintas, por dentro da própria alma, o gosto amargo dessa ou daquela desilusão.
Respeita a carência alheia e não provoques os irmãos ignorantes ou infelizes com a exibição das disponibilidades que os Desígnios Divinos te confiaram para determinadas aplicações louváveis e justas.
Ao invés de criticar, procura o lado melhor das criaturas e das ocorrências, de modo a construíres o bem, onde estiveres.
Auxilia para a elevação, abençoando sempre.
Lembra-te: o morrão aceso é capaz de gerar incêndios calamitosos e, às vezes, num gesto infeliz de nossa parte, pode suscitar nos outros as piores reações de vandalismo e destruição.

Emmanuel



segunda-feira, 29 de agosto de 2011

As bananas que não pintei



Há emoções que não se entende. Aliás, a maior parte delas nasce num lado pouco visitado da nossa consciência e raramente temos presente o material de que são feitas... Sente-se, e pronto.
Anos atrás, vi-me encantada com algumas bisnagas de cores e alguns pincéis. Talento era o que menos importava: a construção da imagem na tela às vezes era como uma berceuse e outras como uma angústia profunda dada a minha inabilidade.
Mesmo assim, sábado após sábado vestia a blusa índigo manchada, pegava a caixa ferramentas onde guardava meu material e subia duas ou três quadras até a escola.
É comum que se inicie por cópias, assim, repetia a figura de uma aquarela de mar revolto batendo contra pedras e ao meio da figura, rochas maiores dividindo a água do céu. Enquanto remava na minha marina, observava outras produções.
Apreensiva com o não progresso no meu trabalho, passava o chimarrão, fazia o chá e distribuía as xícaras fumegantes enquanto observava o desempenho das colegas e me congratulava com tão especial companhia.
Gente talentosa e dedicada. E como eu, mais para ver o que acontecia, só eu mesma. Enfim! Via as cores serem conduzidas pela superfície que ganhava textura e profundidade, e assim produzirem as impressões que adentravam aos olhos.
Quando R. começou um campo de tulipas, que se perdia da vista e entrava no coração, fiquei impressionada com o modo com que segurava o pincel e como, em ações precisas, tecia cada uma das flores. Habilidade e certeza.
Por aqueles dias, V. pintava Frutas. A percepção é progressivamente revelada: ela está na mente, e quem tem a cor vai tirando o branco da tela e compondo a imagem.
É de tocar com as mãos, escolher, tirar da tela e comer. Embora tenha desejado, essas são as bananas que não pintei.

sexta-feira, 26 de agosto de 2011

15 linhas sobre a culpa


Frente à culpa, podemos negá-la, cair em remorso ou encará-la.
Negamos a culpa quando mergulhamos em condutas inconsequentes, quando preenchemos nossas vidas com comportamentos tóxicos, numa fuga para frente em que a mente superexcitada mascara a realidade ou não se apercebe do mecanismo insano em que se envolve.
Caímos no remorso quando damos conta de nossa situação infeliz e tememos a punição pois estacionamos no “olho por olho, dente por dente”. Por orgulho, acreditamos que a autopunição possa nos redimir.
Encarando a culpa, iniciamos o processo de arrependimento, postura humilde que passa pela conscientização das atitudes e da necessidade de recomeço. Entramos, então, na fase do aperfeiçoamento que nos levará ao desejo e à prática da reparação.
Com o aprendizado do arrependimento e da reparação passamos a encarar as consequências dos nossos erros com responsabilidade: não somos mais “culpados” pelas más escolhas e sim responsáveis pelos resultados. Essa é a postura mais compatível com os tempos que estamos vivendo. Que tal?


quarta-feira, 24 de agosto de 2011

Como se ganha uma irmã (e um cunhado e uma sobrinha)

Os irmãos e irmãs compartilham, biologicamente, pelo menos um pai ou uma mãe. Há casos em que compartilham os dois. Em outras circunstâncias, escolhemos irmãos e irmãs entre nossos colegas e amigos. Mas há situações em que nossos pais – ou um deles – escolhem irmãos para nós. Vou contar a história de como ganhei a irmã do meu coração...
Numa dada oportunidade, entra para o patrimônio da família um conjunto de pratos de um material sintético e transparente. As tigelas, circulares, lindamente côncavas, são três tamanhos diferentes: a maior, talvez, medindo uns 40 centímetros de diâmetro, a do meio uns 30 e a menor, perto de uns 25. Como uma cabe dentro da outra, ocupam pouco espaço quando guardadas. Por sua singularidade e beleza, eram disputadas por quase todas as mulheres da família. Minha sobrinha mais velha e eu sempre tivemos olhos cobiçosos para elas.
Falo das tigelas antes de falar da irmã por motivos cronológicos: algumas coisas acontecem antes, e outras depois.
Morava no mesmo andar um jovem casal e, certo dia, no elevador, imaginando ser uma boa ocasião, minha mamãe pergunta qual a cor do quarto do bebê que não demorava muito iria nascer. O futuro papai, serenamente, responde:
- Preto.
Não preciso nem dizer que o assunto acabou por ali mesmo. Recolhem-se, a um canto, minha mãe e sua curiosidade interessada em providenciar algum mimo. O elevador alcança o andar, abre-se e todos desembarcam, eram quase vizinhos de porta.
Pouco depois, num chimarrão, a grávida explica que o marido era muito debochado e que aquilo era uma brincadeira. O tempo passa, a amizade fortalece, convites recíprocos de visitas, aniversários e eis que as tigelas são apresentadas a querida amiga... amor à primeira vista: agora somos três a disputar o regalo.
Minha sobrinha considerava que devesse herdar as tigelas, pois que é a neta mais velha e saberia cuidar delas direitinho. A doce vizinha não se arriscava em muitos comentários, mas insistia em saber onde foram compradas, tamanho seu interesse pela beleza e praticidade de tais objetos. Bem, eu deveria, ao menos, ser consultada sobre o destino de tais pratos quando se fizesse a oportunidade de transmitir a herança. Mas, a cada festa, todas as mulheres juntas, voltava-se ao mesmo assunto. Razões e argumentos para cá, desejos e chantagens para lá...
Um dia, num junho há alguns anos passados, mamãe pediu que eu providenciasse um papel para embalar um presente muito especial. Solícita filha, cuidei de trazer um bem colorido, bem ao seu gosto.
E naquele aniversário, ganhei uma irmã. Aquelas tigelas eram o típico presente que só uma mãe de verdade daria para uma filha. E ela as deu para Inês. Resolveu assim o que poderia ser um impasse ou uma fonte de melindre familiar de uma forma generosa, inclusiva e feliz. Desde então, Inês é minha mais amada irmã do coração.

sábado, 6 de agosto de 2011

Decisões nem sempre são para sempre...

… até porque somos transinteligentes: linkamos as nossas muitas inteligências e fazemos novas relações de aprendizado e de comportamento a cada instante. É o que viver nos exige e todos estamos, no mínimo, medianamente aparelhados para tanto.

Quanto mais progredimos maior é a amplitude da nossa percepção. Daí tiramos que o conhecimento que temos é provisório. Os mais longevos que o digam! O que ontem, ao senso comum, parecia uma verdade inderrogável é um dado ultrapassado no hoje e pode ser antiquado em poucos segundos. Basta que o véu se dissipe e que se penetre numa nova das muitas possíveis realidades.

Podemos discutir o que seja esse progredir, se ele prescinde ou não de sucesso. Então discutiríamos o conceito de sucesso. A consequência direta dessa interminável discussão seria uma queda no looping enlouquecido de definir e retomar a conceituação até o impensável redescobrimento da roda. Demais para a singeleza da proposta de abordar as decisões que nem sempre são para sempre.

O reconhecimento da provisoriedade das nossas informações, das circunstâncias em que vivemos e das escolhas que fazemos, informa a progressão e o refinamento da nossa atuação e colaboração no mundo em que vivemos. Podemos hesitar e resistir à ruptura insistindo em respostas que ficam aquém das novas perguntas, mas essa atitude também é provisória. Lembra? Somos transinteligentes...

Fazer o quê? Buscar a saúde da flexibilidade. Assumir, com humildade, a transitoriedade das decisões nas escolhas que podem ser escolhidas. Relativizar os acertos e os erros. Manter a coerência e a lealdade entre o que se pensa, fala e age.

Então, vamos juntos?

quarta-feira, 27 de julho de 2011

Está tudo dentro de você...





Até o estar de bem com todas as coisas do céu e da terra. Parece que o mundo está um pouco – ou muito – confuso, mas, apesar dessa confusão, coisas precisam ser feitas, e adivinha por quem?
Você não precisa mais se esquivar... ou prefere que as coisas continuem como estão, carregando pesadamente essa sensação de mal-estar difuso e difundido por todo lado?
Pode começar, buscando clareza no seu coração, questionando as razões não aparentes que fazem você decidir sem pensar ou pensar tanto que, ao final, já nem sabe mais por onde ou porque começou... Se você persistir poderá encontrar um caminho não isento de dificuldades, mas tão firme que lhe ajudará a conquistar a autoconfiança necessária para não desistir...
Pode continuar, interrogando se as suas atitudes são compatíveis com o que você encontrou de genuíno e legítimo no seu coração. Pode examinar as sensações que experimenta em frente as dificuldades, a luta que trava para vencê-las ou para incorporá-las, assimilando até solvê-las... E pode decidir quais ainda se justificam e quais podem ser abandonadas... como uma mala, na estação. E você? Entra no trem!
Segue viagem, agora bem mais leve do que não lhe serve mais. Se num instante de hesitação lembrar da mala, pode pensar que nela ainda restam objetos úteis, mas para outras pessoas que compararão a sua bagagem com o conteúdo que você já pôde dispensar.
E pode seguir decidindo, no dia a dia, calmamente, a estratégia mais alinhada com esse novo-você, de mente aberta e coração clareado pela harmonia de sentir, pensar a falar no mesmo tom, no mesmo ritmo do grande passo que a humanidade está sendo chamada a entoar.
Muitos já estão nessa melodia, outros ainda tardam, mas seu lugar está prestes a ser ocupado por ninguém menos que... você. Não haverá dúvidas em se reconhecer nesse estar-pronto sereníssimo. Mas lembre-se: não é uma chegada, é um exercício.

quinta-feira, 2 de junho de 2011

Memória da Jaci

A surra do menino
Todo o dia era a mesma coisa: ele, o chato provocador, chegava a mudar de caminho para azucrinar. É verdade que o mano, três anos mais moço do que eu, não era nenhum santo. O pequeno, com seis anos e alguma coisa, não era fácil. Briguento e sem noção do tamanho dos outros.
Morávamos no interior do interior. A escola nos custava mais de meia hora de caminhada para ir e outro tanto para voltar. Usávamos uniformes de escola, brancos, engomados, com um laço azul marinho.  Éramos cuidadosos com o uniforme, nem tanto por orgulho de estar estudando no grupo escolar, mas mais por temermos o chinelo que certamente nos pressionaria impiedosamente as nádegas se o sujássemos... Coisas de mãe.
Não éramos ricos, mas isso, naquele tempo, não era importante. Morávamos numa chácara que ao fundo tinha um riacho. O chalé não era grande, mas cabíamos nós todos, o pai, a mãe, o mano mais velho, eu e o mano mais moço. Minha irmã nasceu bem depois...
Meu pai tinha um cavalo, e quando voltava do trabalho, permitia que eu montasse dentro do terreiro cercado. Ele tropeava gado para o matadouro de meu avô. Quando meu avô morreu, meu pai passou a vender enxertos de frutíferas. Ia a cavalo pelos interiores mais interiores ainda, colhia os pedidos e mais tarde distribuía as mudas usando uma carroça comprida, onde as mudas eram amarradas em feixes conforme os pedidos.
Minha mãe era uma mulher bonita, muito trabalhadeira, sempre via o que fazer. Mantinha-nos asseados e nos disciplinava com severidade. Tenho poucas lembranças dos meus irmãos, de brincadeiras juntos, de brigas. Quase nenhuma lembrança. Poucas exceções, tanto que encontro essa agora e antes que fuja, escrevo.
Como dizia, íamos a pé para a escola. O menino provocador era bem mais velho e não estudava na minha sala. Fazia quase o mesmo caminho dizendo coisas à meia voz, perfeitamente audíveis e ofensivas na minha inteligência de nove anos e meio. Bem que ele poderia estar respondendo a provocações de meu mano, às quais eu não assistira. Meu irmão também resmungava. E íamos e vínhamos nesse tom.  Dia após dia. Mas um dia...
Foi na volta para casa. Não adiantava apressar o passo ou relaxar o ritmo. Ele nos perseguia. Palavras de lá, resmungos daqui, e eu quieta. A estrada era lisa e abaulada, recém a patrola havia passado deixando seus característicos sulcos nas laterais, embarrados por uma das muitas chuvas de verão. Lentamente tirei o laço de fita, o guarda-pó branco e os guardei na minha “pasta”, um saco de açúcar “cristal” onde cabiam o caderno, o livro, o lápis e a borracha. Bem dobrados, o uniforme e a fita couberam.
Em um salto, empurrei o grandão. Ele caiu na vala lateral. Antes que se levantasse, pulei sobre ele e esmurrei. Uma, duas, três... Muitas vezes. Perdi a conta. Ele não reagia, pois o meu peso impedia. Não sei quando parei, se cansei ou se me tiraram de cima dele.
Quando chegamos em casa, nenhuma palavra para ninguém a respeito. Almoçamos. No meio da tarde, a mãe, com o menino pela mão, veio conversar. Contou o ocorrido. Minha mãe chamou e eu confirmei.  Vendo o tamanho do menino agredido e o meu tamanho - sempre fui mirradinha -, falou para a mulher que eram coisas de crianças e que não havia o que fazer. Foram embora. O menino nunca mais nos importunou. Dias depois ouvi, por acaso: -“se a mãe dele não tivesse falado, eu não acreditaria...”